sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

[de onde vens alma breve?]

Wilie Kessel Photography

de onde vens alma breve?
donde vindes filho meu?

do alto mar onde nasceste sem relâmpagos
iluminando alguma aurora mais escura

ou

da masturbação infame das ondas em teus olhos cansados?
[tanta puta de interrogação sem destino]

tanto desespero sonâmbulo
subcutâneo

sem hora certa
amor mal soletrado que se arrasta
por mais um dia:
igual
sem sorriso.

O medo do princípio e fim.

Não consigo adiar o grito alumbrado
nem deixar de sentir a árvore florescendo no silêncio noite
das falas que se conhecem livres
afoitas

não
não quero mais

o abstrato da poesia sem sentido sentimento
dor saudade
[que se danem o amar e o respirar]
a redução do tempo evidente
o crepúsculo que se esconde

rápido.

diante de mim o mar eleva-se abrupto
concreto
fúria

para onde me levas alma contínua?

Talvez já não queira ser.



(Ricardo Pocinho – O Transversal)


sábado, 24 de janeiro de 2015

[e são regressos as simples brisas restantes]


e são regressos as simples brisas restantes
antes as repetições cansadas
as preces escondidas

o relento pronunciado e estrelado

enfim

as mãos unidas à garrafa vazia
o vinho bebido imolado. Escuridões.

Rendem-se os passos um dia à volta desse silêncio que queimava o chão duro e
concreto
sem areia molhada de mar empanturrada pelas promessas longínquas
a rapidez trepidante do pensamento envolvido por nevoeiros perpétuos. Esquecimentos.

É breve hoje a noite
sem paragens ou um adeus demasiado longo
tudo regressa
até as origens
e aquele peso amorfo desnovela-se
sem a velocidade do destino escolhido. Vem comigo!

Afaga as mimosas
que apenas


ficaram suspensas. Esperas.


(Ricardo Pocinho - O Transversal)

sábado, 10 de janeiro de 2015

[no meio dos caminhos sempre existirão águas amotinadas]


no meio dos caminhos sempre existirão águas amotinadas
as recordações que o tempo não esquecerá
as saudades
enquanto as pessoas se sucedem frente aos nossos olhos já secos

a viagem que nunca se repete.

No meio do poema havia um grão de areia
e uma semente
ambos dormindo longe
[muito longe daqui]

deslumbramentos roubados
ou sonhos
ou a cegueira inicial na escuridão
pela noite sem cintilantes e cometas

para onde vais?

Apenas o desejo da fusão completa
una

aumentando plena a cada suspiro mais forte
como sangue
que a trote calca o areal virgem continuamente

tateio o teu corpo alma
palmo a palmo
sem tempestades. Tateias-me sem as noites e as manhãs.

Do grão em areia nasceu a praia virada a sul
da semente nasceu a orquídea e uma sombra

perto do horizonte
e os dias não se estilhaçaram.

Continuo sem saber explicar-te
o mar que voa
a ave que sonha
o azul e o branco

que não se repetem

[jamais].



(Ricardo Pocinho - O Transversal)

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

há sons que trespassam a noite [cortam-na pela metade]


há sons que trespassam a noite [cortam-na pela metade]
como sigas afiadas a pele

e gaivotas que gritam a norte em pleno Tejo nos dias tristes

planando sem o bater das asas
sem o descanso.

De nada serve o sufoco do caminhar
distante
incrédulo

calcando chuva a cada passo

nada trazem as canseiras que esgotam
atrofiam
ou aqueles horizontes insuperáveis
crepúsculos passageiros
desejos
perversos
que atravessam paragens certas.

Definha o sexo antes exuberante
empinado

breve o tempo que se desejava eterno
imparável
assim fossem os dias
as noites
o amar
porque não as fugas?

Tudo regressa.

Há gaivotas que gritam trespassando os silêncios das noites que sobraram dos dias tristes


[e há um rio que o mar engole].


(Ricardo Pocinho - O Transversal)