Menção Honrosa XVII Prêmio Estadual Ideal
Clube de Literatura – Contos, Prêmio Moreira Campos
In Antologia Ideal Clube de Literatura
Sabia que sempre ouviria a fala do mar mesmo
onde estava sentado tão longe de tão perto
(Ricardo
Pocinho pseudônimo Maria Francisco)
Desde
sempre se lembrava de ouvir o mar mesmo quando aprisionado entre quatro cantos
onde o sol jamais nasceria tentando não enlouquecer relembrava ondulações a
beleza da violenta procela engolindo o areal na hora de o abandonar onde as
crianças brincavam pelo verão quente.
Ao fim
destes anos tantos ainda não sabia arrumar as manhãs por descobrir prolongando
repousos ao abandono clamando tréguas ou pequenos esboços enquanto as entranhas
do corpo zumbiam como medusas cobertas de luzes da abóboda boreal mas não se
preocupava muito com isso agora que estava no topo do mundo; nunca lhe tinham
quão difícil seria entender o estrondo dos trovões que antecedem o paraíso a
eternidade talvez um sopro a mais de um vento norte desalinhado numa terra
apressada em que as escuridões se clareiam desconsoladas ao contrário dos
amantes em seus afetos sempre por demais frágeis. Um pouco antes tinha
observado aquelas multidões vagueando símiles a folhas caídas tapando o húmus
por entre estranhas conversas fingidas por perto mas tão longe jazendo
adormecidas ou em suspiros e murmúrios controlados do outro lado do espelho
ainda intacto em linha reta. Impossível não se deixar invadir naquelas pequenas
batalhas vidas que mantêm as indiferenças e as contemplações por um breve
silêncio repetidas pelo acordar subitâneo sem um começo perguntou-se então:
“para que serve o som?”
A
metamorfose da luz encadeava-o relembrava-se do caminho antes trilhado a
repetição do que decorara na adolescência “gritas as cores do silêncio pelos
sítios sem fim das mimosas das orquídeas o tédio que a poeira dos caminhos
invade nada te trazem de novo nem a seda para cobrir a nudez da cascata” porque
as partidas são como crepúsculos sós inertes construindo (ou reconstruindo)
corpos recordações peregrinas aliviando pequenos esquecimentos na vã ilusão de
alcançar.
I
Tinha
chegado muito longe sempre com o mar por perto embora por vezes não o ouvisse e
mesmo que o pouso ruísse pelo tempo perdido desta ou daquela noite inexorável
cobria-se do vermelho incerto das cerejas da mesma forma que volvia olhares
inflamados impregnados da maresia que o cantar das estrelas lhe provocava não
as entendia nunca as entenderia mesmo se as ouvisse repetidamente até ao
desiquilíbrio total do suor rorejando sem paragens libertando cada poro da sua
pele já gasta das tempestades de si recriando a nova roupagem com as raízes
expostas a ventanias inventadas depois vinha o centro as pedras vivas o
intermitente sentido das coisas que queria esquecer.
II
Tudo
lhe era estranho até a partida pela noite em que os meteoritos resolveram
aparecer em catadupas desencalhados da escuridão adormecida frustrando cálculos
longitudes ou latitudes iluminando até uma lua obesa envolta pelo cansaço
recolhia a cortina mas precisava do rumorejar da corrente de um ofegante rio
unindo-se mar afora sim.
Ao
princípio tudo lhe parecera entrelaçado não fossem as imagens que fixara
envoltas pelo sonho fio de linho olvidado sem utilidade e tinha a certeza de
que esta não seria a sua única ou última experiência ardendo a cada nova investida
mesmo que os sargaços inventados alegrassem náufragos de si mesmos sabia que
esta terra não era a sua o mundo e no mar sossegam as quilhas perfeitas os
centros que apagam os luzeiros os faróis suspensos em promontórios escuros como
o breu tudo se escondendo pelos areais submersos onde nasceram algumas casas
com flores plantadas na janela.
III
Era
tempo de ir não um regresso puro e simples até ao local da partida que o seu
olhar já tinha implodido em cores dispersas sem jeito devido à visão perdida um
dia pela manhã antecedendo as muralhas do crepúsculo breve e tatuado vezes
infinitas como uma ave morrendo em pleno voo antes de descansar nas nuvens
sôfregas tudo completando; contemplações dos altos inimagináveis onde se
agarrara como uma lapa mesmo que as visões sossegassem apenas por alguns parcos
segundos regressariam as outras paragens mais distantes de mundos
atropelando-se reconstruindo abismos em bruto nesse afã terrível de conquista
anovando velhos ódios vinganças jamais esquecidas símbolos sem nexo desfasados
onde o antes caminhava por perto pelo piscar de olhos a bombordo.
...
Sabia
que jamais regressaria agora que tinha chegado ao cume do mundo onde o som eco
se multiplicava por mil e o acordar na rododáctila saciada afugentara as trevas
o vendaval prenunciando a luz de um novo e magnífico dia.
As
aparições que as sombras deixaram de refletir desfaziam-se por entre as
escarpas pintadas de cal branca ferindo e incomodando os círculos que restaram
sem princípio sem volta a dar mesmo quando as luzes se voltarem a apagar pelas
paredes das rochas a pique suspiros credos escuridões e onde o cheiro das
madressilvas escondem andorinhas lá longe pelos nevoeiros que tudo cercam os
homens então confessam-se desapaixonadamente às marés vivas caladas impessoais
rasgando eternas memórias desta terra não despojada de gritos perdidos
inventados pelas horas desabrigadas com o tamanho das cousas.
Brotam
desassossegos.
...
Feridas
e cicatrizes crepitavam em falsas tréguas cansadas do voo tão extenso desconhecendo
pousos ou cintilantes indicando rotas alguns clarões repentinos se repetiram
incandescentes.
Já
tinha descansado o suficiente e a sua visão tudo tinha captado ponto por ponto
mesmo os pormenores mais ínfimos e embora o níveo fosse predominante por todo o
lado se esticasse o pescoço tocaria no azul que cobria o céu de par em par
emocionou-se.
Existirão
um dia mais tarde tentativas para se explicarem as confidências desconhecidas
os nomes dissipados pelo tatear de nadas arrefecidos por sentimentos estranhos
que tudo atrapalham e perdem-se os tempos tentando conquistar espaços
limítrofes quantos lugares cabem dentro de cada um de nós sem os defuntos olhos
negros ou o branco do luto?
Sabia
que sempre ouviria a fala do mar mesmo onde estava sentado tão longe de tão
perto num repente levantou-se as asas já estavam secas.
Rodou o
corpo olhando com toda a atenção mais uma vez as montanhas dispunham-se
enfileiradas e a neblina tapava os vales cobertos de neve.
Agradeceu
então.
Ao
mesmo tempo que o bater das suas asas ganhava mais intensidade um curto salto
foi suficiente para que o vento o envolvesse totalmente e o voo recomeçasse nas
direções do mar por perto.
Deixara
de ser o habitante de si próprio.